Hoje é um dia de preguiça…
O céu está nublado e o meu corpo pede-me um dia de outono,
como se estivesse em Portugal. Afinal o mês de setembro está mesmo a terminar.
A diferença é que aqui em Cali, onde estou agora, o calor
abafa desde as primeiras horas da manhã e a única coisa que me fala de outono é
o cinzento nublado do céu… Aliás, por cá, não existem quatro estações. Ou estamos em
época seca ou em época de chuvas. A temperatura mantém-se sempre estável num
calor que prende muitas gotinhas de água salgada à superfície da pele.
Decidi que hoje é um bom dia para me sentar à pequena mesa do
quarto do hostel e entrar num registo de recordação.
Recapitulo. Viajo na memória e regresso ao primeiro dia em
que entrei na Colômbia. Mentalmente, e de coração, volto a Cartagena.
Recordo o calor, as muralhas, o estilo colonial e as pessoas
de pele negra. Gostei muito da cidade, da alegria e da música dos costeños e
até de cada contraste (sempre tão evidentes nas cidades da América Latina).
Contrastam aqui os ricos e os pobres, os bairros locais e os turísticos, a vida
real para tantos e o luxo que poucos alcançam a ter. Viajar de bicicleta é
também uma forma de contactar com as diferentes perspetivas e vivê-las na pele,
nos olhos, no pensamento e no sentir… No questionamento e na abertura de mente.
De Cartagena segui, ainda na companhia do Tiago, para
Barranquilla. Foram dias de intenso calor. A estrada era pouco exigente e isso
ajudou-nos a gerir o esforço dos pedais. Falando com sinceridade, eu agarrava-me
à ideia de que seria em Barranquilla que a minha bicicleta iria voltar para
casa e seria lá também que a minha viagem de mochila iria começar, numa leveza
e ritmo diferentes.
Sabia de antemão que teria saudades da viagem que a
bicicleta permite.
Sabia, ainda, que o facto de prosseguir sozinha seria um
desafio imenso para mim. Sabia que estava com medo e esforçava-me por aceitá-lo
e não fugir dele.
Sabia que muitas coisas iam mudar e não sabia o que me
esperava.
Sentia-me oscilar entre uma esperança, embrulhada em
deslumbramento e curiosidade, e o pânico das incertezas num salto para o
desconhecido.
Quando chegámos a Barranquilla, encontrámos os amigos de
Portugal que vieram passar férias à Colômbia e a quem eu pedi para
transportarem a minha bicicleta, junto com a sua bagagem, no regresso a casa.
Foi um encontro de corações. No abraço demorado chegaram as
lágrimas quando senti bater, tão perto do meu, um coração querido e familiar.
Depois deste encontro, eu e o Tiago, fomo-nos preparando,
cada um à sua maneira, para continuar a viagem de forma individual. Partilhámos
os nossos medos e angústias um com o outro e trocámos votos de confiança
mútuos. Afinal, cada um sabia que estava no caminho certo e só podíamos
prosseguir em confiança, ainda que sentíssemos que o desafio se pousava numa
fasquia bem elevada.
Quando nos despedimos, os corações apertaram-se, o nó na
garganta cresceu e um novo caminho se abriu para o desbravarmos em curiosidade
e esperança.
Começava ali a minha viagem sozinha. No momento certo e quando
era para ser. Num país onde me tenho sentido abraçada e acarinhada mesmo quando
me confronto com a estranheza dos locais quando digo que viajo sozinha.
Éramos agora dois viajantes que aprenderam um com o outro a
arte de andar em rumo itinerante.
Éramos agora dois, onde antes tínhamos sido
um, que sabiam que a história imaginada se estava a reescrever entre corações
apertados e vontades de descoberta ampliadas.
Para onde íamos na continuação da viagem?
Eu, de Barranquilla segui para o norte e parei perto de
Palomino, uma povoação pequena e relaxada na costa das Caraíbas.
Fiquei uns dias, a saborear o sol e a tranquilidade e parti
em seguida para Riohacha com o objetivo de explorar as areias do deserto da
Guajira, na parte mais a nordeste da Colômbia e encostada à vizinha Venezuela.
Enquanto isso, o Tiago estudava a altimetria do terreno
montanhoso procurando seguir a linha sinuosa dos vales verdejantes.
A Guajira foi a minha primeira surpresa. Lá, a harmonia
espelha-se num casamento singular entre o deserto e o mar. A areia e o sal. O
vento forte e as ondas suaves.
Passei três dias e duas noites no território do povo Wayuu, os indígenas da região.
Dormi nas rancherias,
os casarios deste povo, e deslumbrei-me com as paisagens surreais.
No deserto também me confrontei com uma realidade diferente
e desconhecida. Os Wayuu, que antes eram um
povo isolado neste canto norte da Colômbia, procuram agora aproveitar o turismo
como uma das suas fontes de subsistência.
Não só providenciam hospedagem e restaurantes, como
disponibilizam gasolina barata que chega (sabe-se lá como) da Venezuela e
aproveitam todas as oportunidades para conseguir ofertas extra, como bolachas e
doces para as crianças e dinheiro que fazem com a venda de frutas e mariscos, à
beira dos caminhos.
O deserto encheu-me de momentos que se transformaram em
lindas recordações mas que também me invadiram em forma de questões sobre a vida (e
dificuldades) dos Wayuu. Às vezes
tenho vontade de ficar mais tempo nos lugares para compreender melhor as
vivências, as histórias, as aventuras e desventuras de quem lá vive.
Algumas questões consigo exteriorizar… outras ficam cá
dentro a ganhar forma e talvez nunca saiam em busca de uma resposta.
No regresso a Riohacha refiz as malas e rumei a sul.
Descobri a cidade industrializada de Bucaramanga e pausei lá um dia antes de
conhecer um lugar de encanto chamado Barichara.
Comecei assim a serpentear
pelos Andes, correndo a toda a velocidade por caminhos desnivelados e curvas
apertadas.
Barichara é daqueles lugares que me preenchem. Senti lá
cheiros da minha infância e retomei as caminhadas que tanto gosto de fazer.
Lembrei-me de mim e reencontrei-me em momentos de silêncio e contemplação.
Percorri as ruas devagar, senti as paredes e sorri perante
as cores das portas e das janelas. Tudo me chamava e me recordava a magia de
viajar por um lugar que mais parecia retirado de um conto de fadas.
– Me enamoré de
Barichara!
Daqui, o caminho fez-se longo até Medellín e em seguida Bogotá.
Reencontrei-me com o Tiago em Medellín e viajámos juntos de autocarro até à cidade capital. Em ambos os lugares fomos recebidos e acarinhados por portugueses que lá vivem e as visitas a estas cidades merecem um post só para elas que escreverei em breve.
Apesar de quase sempre com um trânsito infernal e muita
contaminação, ambas nos deram a conhecer os seus encantos e o facto de termos
usufruído da companhia de pessoas do nosso país, deu àqueles lugares uma magia
especial.
Depois de Bogotá, voltámos a despedir-nos, um do outro (e
voltaram os sentimentos ambivalentes, bem como a certeza de que cada um
prosseguirá a sua viagem individual rumo a sul). Quando nos voltaremos a ver
foi a questão que permaneceu em cadência suspensiva, navegando no nosso
pensamento.
O meu caminho prosseguia para a região do Eje Cafetero, a
zona dos melhores cafés colombianos.
Não me interessava propriamente ficar
pelas cidades principais e, por isso, escolhi visitar duas povoações pequeninas
e acolhedoras perdidas nas encostas andinas.
A primeira foi Salento. Para além de me deixar cativar pelas
suas ruelas, cheias de cor, fui ainda perder-me no Valle de Cocora que alberga, ali perto,
as palmeiras mais altas do mundo e que são as árvores representativas da
Colômbia.
A caminhada, de 4h30, que fiz pelo Valle de Cocora foi tão
especial que necessariamente lhe teria de dedicar um texto inteiro, publicado
aqui no América a Pedal (Link para o post: Salento e Valle de Cocora).
Também aproveitei para visitar uma quinta de café, bem
pequena e familiar onde a produção se faz de acordo com princípios de
agricultura biológica e toda a preparação do café é feita através de processos
artesanais, até estar finalmente moído e embalado.
Gostei muito da energia de Salento. É um lugar que
recentemente começa a atrair o turismo mochileiro e onde se passam uns dias
calmos e bucólicos.
Daqui, segui diretamente para Pijao e, esta sim, é uma
povoação retirada do circuito turístico habitual. Foi-me recomendada por um
senhor alemão que conheci em Barichada e, em pesquisas na internet, descobri
que é o único lugar na Améria Latina onde se promove o Movimento Cittaslow.
Fiquei hospedada na casa da promotora e impulsionadora desta
filosofia de vida, em Pijao, e adorei conhecer os seus princípios que apelam a
uma redução do ritmo de vida demasiado acelerado que levamos atualmente, em
tantos lugares. O Cittaslow
recorda-nos os benefícios de adotarmos um estilo de vida mais lento, ampliando
o conceito às dinâmicas das comunidades, sejam elas relacionais ou comerciais.
Um livro que explica bem esta forma de vida é o “In Praise of Slow”, de Carl Honoré, para
quem esteja mais curioso sobre o Movimento.
Posso dizer que vivi em pleno este elogio à lentidão em Pijao. Lá,
tive igualmente a oportunidade de acompanhar a equipa de guias da câmara municipal
numa caminhada tranquila pela serra e de ainda ser entrevistada, na condição de
viajante, para o canal da televisão regional, o Tele Café, que tinha como objetivo dar a conhecer a região e o conceito Cittaslow.
Finalmente depois de muitos dias a respirar ar fresco e
puro, regressei à cidade desde onde escrevo agora.
Cali, a capital da Salsa. O lugar onde os caleños (assim se
chamam os habitantes daqui) orgulhosamente promovem a cultura da dança e não há
“alminha” que não saiba bambolear-se ao som deste ritmo tão vibrante.
Como eu adoro salsa e há uns anos aprendi a dançar um bocadinho,
aqui tinha de ir ver como a música e a dança aquecem ainda mais a noite caleña.
Aproveitei a aula aberta do Baile Social Club na Plazoleta Jairo Varela e fui
em seguida espreitar o baile no bar La Topa Tolondra.
Foi uma experiência que me permitiu acrescentar mais um “check” na lista de coisas que
gostaria de experimentar nesta viagem:
- Dançar Salsa em Cali: Check! :)
Apercemo-me agora de como este texto já vai longo... E conto quantas palavras já escrevi sobre esta Colombia Hermosa, de paisagens
verdejantes, encostas íngremes e férteis e ritmos quentes e sensuais… Tantas
recordações para acrescentar à bagagem. Tanto e tão bom este caminho desbravado
por este país…
Ainda tenho alguns dias para conhecer uns lugares mais a
sul. Gostaria de passar por Popayán e Ipiales. Vamos ver se o plano se mantém
ou se o improviso da viagem me conduz de outra forma.
Até já! ;)
Informações e Links:
Hospedagem:
Cartagena - One Day Hostel; 80.000 pesos/ noite (quarto privado para 2 pessoas com AC, wc partilhado, pequeno almoço incluído): www.facebook.com/hosteloneday/
Barranquilla - Hotel Boston; 70.000 pesos/ noite (quato privado para 2 pessoas com AC, wc privado, pequeno almoço incluído)
Palomino - Hostel El Spot; 30.000 pesos/ noite (dormitório): www.facebook.com/Elspotpalomino
Barranquilla - Hotel Boston; 70.000 pesos/ noite (quato privado para 2 pessoas com AC, wc privado, pequeno almoço incluído)
Palomino - Hostel El Spot; 30.000 pesos/ noite (dormitório): www.facebook.com/Elspotpalomino
Riohacha - Hotel Plaza Roma; 70.000 pesos/ noite (quarto privado com wc): www.facebook.com/hotelplazaromariohacha
Bucaramanga - Hotel La Pera; 50.000 pesos/ noite (quarto privado com wc e pequeno almoço): www.laperahotel.com/
Barichara - Hotel Casa Aparicio López; 60.000 pesos/ noite (quarto privado com wc e pequeno almoço incluído): www.casaapariciolopez.com/
Salento - Hostel Tralala; 60.000 pesos/ noite (quarto privado com wc partilhado): www.hosteltralalasalento.com/
Pijao - Pequeña Casa Pijao; 40.000 pesos/ noite (quarto privado com wc e cozinha partilhados): www.facebook.com/Hotel-La-Pequena-Casa-Pijao
Cali - Hostel La Iguana; 50.000 pesos/ noite (quarto privado com wc partilhado): www.iguana.com.co/
Barranquilla - Palomino: 20.000 pesos
Palomino - Riohacha: 8.000 pesos (aproximadamente)
Riohacha - Bucaramanga: 75.000 pesos
Bucaramanga - Barichara: 18.000 pesos
Bucaramanga - Medellin: 55.000 pesos (aproximadamente)
Medellín - Bogotá: 60.000 pesos
Bogotá - Pereira: 52.000 pesos
Pereira - Salento: 7.000 pesos (aproximadamente)
Salento - Armênia: 6.000 pesos (aproximadamente)
Armênia - Cali: 22.000
Excursão pelo Deserto da Guajira; 450.000 pesos, para 3 dias e 2 noites com tudo incluído (transporte, guia, refeições e alojamento).
Salsa em Cali:
Segunda-feira - Aula Aberta na Plazoleta Jairo Varela, das 19h às 21h (grátis) e Noite de Salsa no bar La Topa Tolondra, das 20h às 1h (custo de entrada 6.000 pesos).
Segunda-feira - Aula Aberta na Plazoleta Jairo Varela, das 19h às 21h (grátis) e Noite de Salsa no bar La Topa Tolondra, das 20h às 1h (custo de entrada 6.000 pesos).
NOTA: Todas as informações e valores dizem respeito a
setembro de 2016.
I so enjoy reading your journals. Very sensuous. I am pleased that I'll be in your footsteps, somewhat, but in reverse sequence, very soon.
ResponderEliminarBest to you
Dave
Olá!! Que legal seu relato. Eu tb vivi com uma comunidade indígena na Guajira, como se chamava a rancheria que vc foi? Abraços, muito legal seu blog!
ResponderEliminar